quinta-feira, 12 de julho de 2012

O transplante

Quantas vezes é preciso morrer para querer estar vivo? Estamos no fim da linha e as luzes são amarelas e há homens mascarados sob mim. Massageiam meu peito, tocam minha boca sem permissão, enfiam tubos e tubos, eu não disse que podiam. Sem interferências.

Eu digo: NÃO ME TOQUEM.

O dia é quase rosa. É novembro e estamos num parquinho de uma cidade sem nome - os bancos encardidos e os brinquedos enferrujados. Ela tem os cabelos nos olhos e seu sorriso causa todo o vento. Ela vai para frente e para trás na balança vermelha que range. Ela vai para frente e para trás.

A parede está meio mofada, ela balança, vai para frente e para trás, a parede mofada me prende a concentração. Ela diz que está quase lá e eu sinto nojo. De mim e da parede. Ela cai para o lado, eu acendo um cigarro. Escorre um fio podre na parede branca mofada.

O dia é tão rosa, tão rosa. A menina corre por entre as árvores. Estou usando a camisa nova. Minha mãe avisa: "tome cuidado". Caio numa poça. Estou todo sujo de lama. Minha mãe grita e diz que irei apanhar.

Não consigo me mover ou abrir os olhos. Uma voz diz que eles estão me curando. Não acredito. Eu estou chegando lá, tenho certeza. No mais longe. Mas eles irão me curar, não é?


Por quanto tempo é preciso estar vivo para querer morrer? Por quanto tempo é preciso estar morto para querer voltar a vida? Eu sempre escolhi a vida. Eu sempre fui a favor de viver. O problema é que nunca estive vivo. Faltava algo, a energia vital. O que nos torna realmente viventes. Apenas existi. Apenas existo. Resisto. A voz diz que eles estão fazendo o possível para juntar o que ainda serve. 


Eu digo: Transplantem-me uma nova alma. 
Ninguém escuta.

A porta se abriu e ela gritou, havia vômito viscoso verde e eu mergulhado naquela poça. Estou todo sujo. Você quer me bater, mãe, no entanto você só grita. Grita tão alto que meu corpo convulsiona em resposta. Você gostaria de poder me bater, mas só consegue gritar e gritar e gritar.

O dia estava cinza, mas eu deveria ter esperado. Deveria ter esperado a madrugada. Deveria ter trancado a porta. Deveria ter deixado um bilhete. Não, mamãe, me perdoe. Eu posso me lavar. Eu posso lavar-me para você. Eu estarei limpinho e você não me baterá, você irá me abraçar, mamãe. Você não gritará comigo, dirá que me ama. Eu ficarei limpo por este abraço, mãe. Não grite. Não grite. Deixe-me ir em paz, deixe-me ter vida própria. Deixe-me ser parte do todo e não um nada. Preciso da sua permissão. 


Eu digo: NÃO ME TOQUEM. 


Mas eles continuam a enfiar tubos pela minha garganta, eles estão tentando me curar, mas as peças não estão servindo. Eu não sirvo, mamãe. Diga à eles. Diga à eles para não interferirem. Diga que o dia está cinza, o dia está cinza, mamãe. Ninguém nunca esteve atrás da porta, por que então? Quantas vezes eu precisarei morrer ainda hoje? (Quantas vezes for preciso para viver.) Quanto tempo é preciso para morrer agora? E agora? Quanto tempo falta para desistirem?


**

Eu acordo em outro lugar que não em mim.
Eu sou outro lugar que não eu.
E respiro, depois de 20 anos, respiro
pela primeira vez desde que nasci.
Nas cinzas e das cinzas,
a reconstrução e, enfim,
o transplante.
O choro desesperado
agradece a dor que sente
pois sente.
A mãe sangra emocionada
o filho que nasceu como o sol
naquela manhã azul anil.

"Taquicardia", o corpo chama a enfermeira. 

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Duas portas

Eles não te darão o tratamento psiquiátrico que você precisa. Nem as palavras, nem a presença. A verdade é que você está sempre sozinho. Por mais que eles digam que estarão lá, não há ninguém atrás da porta quando você desmaia. Há só você em cena no momento em que fita os remédios e dialoga sobre o que será. Você e a válvula de escape. Não há ninguém na sua cabeça para dizer que não e ninguém ao seu lado para impedir esse instante. É só você. Você, os remédios e as paredes.

Eles só podem limpar as feridas que conseguem ver, mas usam óculos escuros e nossos relógios são de diferentes tempos.

**

Meu despertador aguarda o momento.

Agora.

As luzes do banheiro estão todas acesas, o que acentua o espelho manchado de dedos e respingos. Há um inseto esmagado na pia suja de pasta de dentes e a fumaça do cigarro quase no fim dando voltas no Box verde que minha mãe odeia tanto.  Nunca prestei atenção a essas coisas que só os que se importam vêem, como os fios de cabelo no chão ou unhas mal-cortadas.
Minha cueca molhada das poças do banho de hoje cedo me incomoda. Talvez eu devesse molhá-la de outra coisa pela última vez, mas não tenho vontade. Acabou o fumo, o filtro queima as pontas do meu dedo, mas eu não me movo. Daqui a algumas horas eu não sentirei mais nada.

- Cite três fortes razões.
- Diga o nome dos culpados.
- Explique a sua decisão.
- Argumente.
- Pese prós e contras.
- De novo.
- De novo.
- De novo.

A verdade é que se você precisa se convencer de fazer algo, é porque não quer fazê-lo.

Mas os remédios estão enfileirados, todos cor-de-rosa, não sei quantos, mas muitos, iguais aos da primeira viagem. E a casa está vazia, nenhum grito atrás da porta. Ninguém chamando para o almoço e o telefone está desligado.

Eu esperava fazer isso durante a madrugada, mas o dia está cinza. Tanto faz.
Eu deveria deixar um bilhete? Nunca deixei bilhetes.

Agora.

Não há ninguém atrás da porta enquanto a morte te engolfa.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Pela metade

(cena I: Estou esperando o sinal. A pontada que anuncia o vômito. O esôfago queimando, o estômago em minhas mãos.)

A cena se confunde.

Olhando para escuridão agora, entre aquele círculo azul no meio dos meus olhos e o vazio que os circundam, 24 quadros passam correndo como num filme. Cada cena um novo cenário, uma nova causa e efeito, mas o fim... o fim é sempre o mesmo. Todos os dias há 6 anos.

(cena I, pt.2 : Há sangue escorrendo de minha boca, de onde acaba de voar meu estômago corroído de úlceras. Há sangue em minhas mãos também, na camisa branca. Sangue na calça jeans azul, na mesa. Olho ao meu redor, tudo que vejo é o nada. Tudo o que não vejo. Morrer...)

Foco.

Dói-me um pouco abaixo das costelas, dói-me o estômago dilacerado dos devaneios anteriores. Respiro fundo, mexo os ombros, a cabeça. Respiro fundo - outra cena.

(cena II: Dessa vez, não há espetáculo. Não há órgão vital fora do lugar, nem o vermelho do sangue. Apenas desmaio em minha cadeira, testa na mesa. AVC... ou seria um parasita? – Morto.)

-... Deveriam mostrar o corpo. – disse alguém.

- Para mim, o processo todo foi armado. Se um avião tivesse batido mesm...

(cena III: Aviões colidindo. Desespero. Fogo. Fumaça. Gente defenestrando-se. Gente gritando. Gente rezando. Gente queimando. Eu debaixo dos escombros, coberto da poeira pesada e de pedras. Morto.)

Às vezes situações alheias influenciam no enredo.

Não importa o quão bonito seja o dia, o entusiasmo do momento, situação qualquer em que me encontre. Os segundos em silêncio são revertidos nesse thriller. Analisando agora, talvez tenha sido essa a forma que encontrei de encarar o sobreviver. Defino esse vício como "perspectiva de vida".

(cena IV: Meu corpo convulsiona numa cabine de metrô. Todos estão olhando, mas ninguém se move. Espuma a vazar no chão encardido e azul. Ninguém me toca, talvez pensem que transmitirei Raiva. Não estão de todo errados, Raiva é o estou transmitindo através do meu campo energético. Sufocar...)

Não acho que eu possua uma tendência suicida, os fatores causadores são alheios a minha ação. Eles são o problema, não eu. Estou mais para um mórbido. Jorge Luís Borges certa vez disse em uma de suas poesias: “Quiero morir del todo; quiero morir con este compañero, mi cuerpo”. Acreditar que estou morto em minha totalidade conforta o que sobrou.

Eu não sou o único, sabe? Gosto de dizer. A sociedade em que vivemos atualmente é constituída basicamente de mortos-vivos, zumbis. O mundo em constante guerra, tremendo, explodindo-se em energia nuclear e nós aqui, sentados confortavelmente com nossos egos. Nossa dor é modista, nossa compaixão piadista, amanhã estaremos a falar sobre a tragédia da vez. Nossa comoção é pela novidade. E ainda esperamos aquela onda de “zumbificação”, um vírus, como nos blockbusters. Não há o que esperar, sabe? Já aconteceu. Está acontecendo agora. Se espalhou por toda rede.

Ansiosamente, eu espero a cura.
A cura é a morte. Morrer é questão de tempo.

Minha freqüência volta à sala, alguém me inclui na conversa.

– Concordo! – digo.

Risada coletiva. Sobre o que falavam?

**
Acendo um cigarro atrás do outro, tentando me equilibrar no meio-fio.
O dia é sempre cinza na cidade dos mortos-vivos.

Quando foi que eu me tornei tão... existencialista?
O momento exato.
O estopim.
Quando foi que a maré me pegou, me embrulhou e não mais...? Não mais.
Boiando por anos no Antlântico me afoguei...
Mas quando?

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Deslembrança: 30 de dezembro - fumei uma erva, engoli um pastel engordurado, dormi no tapete puído e nunca mais acordei.

Isso aconteceu no ano passado.

**

Um carro passa correndo, leva meu ar e a esperança.
- OLHE POR ONDE ANDA! - por pouco...

Quando foi que me tornei tão... necessitado de atenção? Tão carente.
Pedindo sermões, pedindo castigo.

Os cigarros acabaram.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

4-5 mg

Falta de ar, um peso no peito. Tosse. Tosse. Tosse. Quero dormir, quero tanto dormir. Pulmão de algodão. Parece que tem feijão crescendo aqui dentro, pode rir, mas tá doendo. E é revoltante, você passa 365 dias de uma merda de ano fumando uma plantação inteira de tabaco e o pulmão de ferro. Passa dez meses se controlando, para ter uma crise asmática por três dias de estiagem - não deveria ter parado. Às vezes sinto falta da certeza do futuro câncer, sinto falta da fumaça que entra e sai, escurecendo e apodrecendo-me devagar, sinto falta da presença da morte, do suicídio gradual.

Odeio não dormir. A madrugada é convidativa demais ao pensamento masoquista e odeio ver o sol acordar nessa melancolia. Eu gosto é de fingir que o dia será bom, mesmo que nunca.

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As gotas grossas de chuva passam correndo e se perdem nas janelas. Todos são tristes dentro do ônibus, de rostos cansados, olhares vagos e ombros caídos. Acordei grave e com as mãos ociosas. O velho hábito motor de fumante, levando um cigarro imaginário à boca e o pulmão dolorido encenando o inspirar e expirar. Não sei se é saudade ou é só vontade. Se bem que a minha única vontade é de dormir, estou meio sem vontades esses meses. Deveria ter me dito mais nãos, quem sabe ainda me sobrasse o que querer.

A mulher sentada ao meu lado me olha esquisito. Será o cabelo sujo ou eu disse algo em voz alta? Talvez ela possa ler meus pensamentos assim como eu leio o de algumas pessoas, só de olhar, assim, olho no olho, mesmo que o olhar do outro esteja longe. É quando está longe que a gente sabe mais o que estão pensando.

Queria que tirasse os olhos de mim. Queria que parasse de tentar me-saber. Me julgar. Me olhar de fora. Me olhar para dentro.

Sou tão hipócrita.

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Ignorando o desnecessário do diálogo, o que aconteceu foi isso:

- Você deveria estar aqui há uma hora. – lábios finos.

- Eu sei, desculpa.

- Você dormiu pelo menos? – compulsivamente mexendo nos cabelos.

É o que ela faz quando quer tomar o controle.

- Duas ou três horas.

- E dormiu pouco ainda! Como você quer ter uma conversa séria se nem completamente sóbrio você está? O que tomou? – e grita como se fosse, como se importasse.

- O de sempre.

- Quantos, Otávio? – a jugular pulsando.

- Alguns.

- Eu não aguento mais a sua...

- Existência. É o que vim dizer hoje. Então estamos de acordo. Viu? Eu consigo ter uma conversa séria. A conta, por favor... – quero vomitar.

Cigarros, cigarros, cigarros, cigarros, cigarros, cigarros...

- E o maço mais barato que tiver.

Segunda-feira eu paro. De novo.

Além de hipócrita sou também cretino.

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Mantenha-se gelado para sair ileso. Mantenha-se parado, eles só enxergam o movimento. E principalmente: finja.

O mundo é dos que fingem.

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Saldo de aniversário: Troquei minha namorada por um maço de cigarros.


Condolências

Pois bem, você precisa de fatos.
Fato é que eu não sei ser, então vou estando qualquer coisa só pra não ter que me preocupar com isso. Outro fato é que minha vida é uma merda, mas a vida de quase todo mundo é uma merda, então não há nada de especial em ser parte disso e nada de especial sobre minha vida para dizer. Ignorante quem pensa que sentir demais é algum dom.

Mas você ainda precisa de fatos, você precisa do concreto para visualizar.
Feche os olhos. Imagine um cara qualquer, sem rosto, sem mãos.
Veja tudo que é clichê. Tudo que é doentemente clichê.

Se eu tivesse parado de tentar ser alguma coisa aos 15, talvez eu estivesse algo mais apresentável hoje. Algo além de um nome num papel verde. Otávio Alencar, um velhaco de 19 anos com cheiro de incenso de alfazema. Esse é o único fato, todo o resto é uma mentira bem contada.

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Acordei esses dias e continuei dormindo. Dormi a semana inteira acordado. Não sei qual das opções, mas minha cabeça dói e os olhos estão meio roxos. Ouvi falar que muita gente morreu, mas não tenho certeza. Podia ter sido eu, mas continuo acordando e dormindo.

Estou sem o que contar, esqueci todas as festas, todas as conversas de bar, todos os beijos. Não me faz muito sentido, sabe? Lembrar do que não senti. E eu não sinto há tanto tempo que acho que alguns anos se passaram e eu fiquei aqui, estagnado nas memórias de criança.

Uma lembrança: Gostava de esperar meu pai chegar do trabalho. Esperava a porta, com as mãos sujas de guache. Trazia sempre um chocolate diferente. Bebíamos leite juntos. Saudades de quando era simples assim.

Eu, Otávio Alencar, uma criança de 19 anos cheirando a leite.

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Amanhã é meu aniversário.
Queria de presente os meus (não tão) antigos vícios.
Queria de presente um despacho para esses (não tão) recentes.
Queria não me lembrar que amanhã é meu aniversário.

Otávio de duas décadas. Otávio de tempo nenhum.